Experiências no Curso de Formação Sindical em Havana destacam a resistência cubana ao bloqueio econômico e a importância da solidariedade internacional.
Contribuições informativas e históricas a partir da participação no Curso de Formação Sindical durante os dias 22 de abril a 03 de maio de 2024, Havana, Cuba, que teve como tema “El movimiento sindical latino-americano y los procesos políticos en la construcción de la unidad en el contexto actual”.
Os primeiros dias em Cuba foram recheados de descobertas, diálogos e enriquecimento cultural. Delegações foram chegando e as trocas de conhecimentos foram se dando de forma muito entrosada e construtiva. Ávidos por informações novas, era recorrente perguntas sobre o Brasil e o novo governo Lula.
Entre terça (30) e quinta-feira (2), uma nova edição do evento de solidariedade foi realizada em Havana, reunindo delegados de 22 países, Brasil, Bolívia, Chile, México, Argentina, Panamá, Estados Unidos, Colômbia, Equador, Costa Rica, entre outros, para analisar possíveis linhas de ação nos cenários políticos atuais.
Na terça-feira (30), antes de participar do desfile do Primeiro de Maio, os delegados visitaram centros de produção em Havana, onde puderam visualizar os efeitos do bloqueio sobre a economia cubana, particularmente no setor produtivo. A delegação brasileira conheceu o Complexo de Lacticínios sob a supervisão do Sindicato Nacional dos Laticínios Indústria Alimentar e Pesca, e a Empresa Provincial de Abastecimento de Transporte em Havana sob a supervisão do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Pública.
Neste rico intercâmbio, foi possível ter uma aproximação mais precisa do que significa para o povo viver em um pequeno país bloqueado por uma das maiores potências econômicas do mundo e as dificuldades que isso gera em todos os setores da sociedade e na vida cotidiana de cada família cubana.
A produção de leite teve uma brusca queda. A capacidade de produção da empresa é de um milhão de litros diários, porém com a falta de insumos produzem diariamente entre cento vinte mil litros de leite, e com esse quantitativo tão pequeno, estão tendo que priorizar a merenda escolar. Cerca de quarenta mil litros são ensacados, como leite líquido puro para as crianças pequenas terem o produto e a demais produção é distribuída como leite em pó. Na visita a uma unidade da Empresa Provincial de Suministros del Transporte (EPST) não foi diferente. O momento contou com a participação dos sindicalistas sulamericanos integrantes do curso, dirigentes da empresa pública de suprimentos de transportes, representantes do Sindicato Nacional de Trabajadores de la Administración Pública (SNTAP), além do Vicegovernador de La Habana, Jesús Otamendiz Campos.
Após as explicações sobre o funcionamento da empresa e de sua relação com a organização sindical dos trabalhadores, os visitantes puderam conhecer de perto a estrutura da unidade, incluindo a horta comunitária e o refeitório, espaços dedicados à melhoria das condições de trabalho e convivência dos empregados. A presença de Otamendiz Campos sublinhou a relevância deste encontro para o fortalecimento das relações internacionais e a promoção de práticas laborais justas e eficientes.
A EPST e os trabalhadores organizados pelo SNTAP desempenham um papel crucial na manutenção e operação dos serviços de transporte em La Habana, enfrentando os desafios impostos pelo embargo econômico Norte Americano que patrocina os parcos recursos disponíveis em Cuba. A colaboração estreita entre a empresa e o sindicato, segundo exposto pelos representantes dos mesmos, visaria não apenas assegurar a eficiência operacional, mas também garantir que os direitos e o bem-estar dos/ass trabalhadores/as sejam protegidos. Iniciativas como a horta comunitária e o refeitório foram exemplos dados, como esforços para melhorar a qualidade de vida dos empregados, promovendo um ambiente de trabalho mais sustentável e colaborativo. Assim, destacaram a importância da união entre trabalhadores/as e gestão para superar dificuldades e continuar a prover serviços essenciais para a população cubana. Em Cuba, em especial na EPST, os/as trabalhadores/as possuem representantes na gestão da empresa e colaboram para que a mesma atinja os seus objetivos institucionais e sociais.
Na abertura do evento (2), organizado pela Central de Trajadores de Cuba e pelo Instituto Cubano de Amizade com os Povos, Ulises Guilarte de Nacimiento, Secretário-Geral do CTC, destacou a importância de “socializar ideias e construir essa grande rede de solidariedade e negativas as ações estadunidenses”. Destacou também a necessidade de apoio ao povo palestino e o vice-primeiro-ministro do Ministério das Relações Exteriores de Cuba, Gerardo Peñalver, complementou o diálogo fazendo um breve histórico sobre as relações Cuba – Estados Unidos. As declarações apresentadas conclamaram os/as presentes a manter firme a solidariedade com o povo cubano diante das crescentes medidas coercitivas impostas contra o país na administração de Biden. Cuba resiste e avança apesar da política sustentada de bloqueio econômico, comercial e financeiro, intensificada com medidas coercitivas unilaterais, adotadas pelo governo Trump e mantidas pelo governo Biden.
A reunião com os delegados e delegadas continuou com as discussões em três comissões temáticas simultâneas: “O sindicalismo global e as lutas dos trabalhadores no contexto atual”, “Unidade na diversidade, pelas causas justas dos povos” e “As lutas de solidariedade , sociais e popular em defesa da paz e da soberania do povo”.
A exigência do fim do bloqueio contra Cuba foi um dos temas recorrentes durante todas as atividades, assim como a campanha midiática manipulada a partir do exterior e dirigida à juventude cubana e à muitos países. Foi exposto as campanhas de ódio voltadas ao país e ao socialismo. Por isso, foi firmado compromisso entre as pessoas presentes de construir uma rede de combate à essas manifestações nos países de origem, mostrando a realidade do povo cubano nas redes sociais, terreno em que ataques tem se proliferado.
Miguel Díaz-Canel, primeiro-secretário do Comitê Central do Partido Comunista e presidente do país, destacou que 70% da delegação presente veio pela primeira vez em Cuba, o que reforça o quanto Cuba continua sendo inspiração à diferentes gerações. É possível afirmar que Cuba foi tema recorrente de muitas discussões e interpretações em vários países. No Brasil, a luta revolucionária foi pela maioria da imprensa tratada com grande temor, “o perigo comunista latino-americano” estampou vários jornais e era rechaçada pela direita; no movimento estudantil ela foi amplamente debatida e inspirou várias atividades; nos militantes de esquerda despertou paixão e entre pesquisadores, principalmente historiadores e sociólogos, gerou e continua despertando inquietação na busca da compreensão das influências nas lutas sociais internas.
“Cuba continua sendo um referente e um espaço de encontro para aqueles que aspiram um mundo melhor, e isso significa que também a família da solidariedade está crescendo e que nas novas gerações o sentimento de solidariedade está se incrementando.”, afirmou Días-Canel no evento. Se fizermos um levantamento historiográfico sobre Cuba no Brasil, veremos que Cuba permanece sendo objeto de interesse intelectual brasileiro e latinoamericano acerca da sua história e do seu destino. Podemos citar os estudos de Florestan Fernandes, Emir Sader, Abelardo Blanco e Carlos Dória, Ivaldino
Tasca e Ricardo Pérez, Tânia Quintaneiro, Denise Rollemberg e Idália Moréjon. Tais estudos abordam uma gama variada de temas, e apresentam Cuba sob várias óticas; nas suas relações com a América Latina; nos impactos políticos nos partidos e organizações de esquerda; nas tratativas internacionais e impactos do bloqueio econômico; e sob os sacrifícios, heroísmo, benefícios, prejuízos, ideologia e contradições.
A delegação brasileira participou da comissão que teve como temática “O sindicalismo global e as lutas dos trabalhadores no contexto atual”. As falas da mesa reforçaram a importância de não naturalizar o bloqueio. Todas colocaram para as pessoas presentes esse posicionamento e defesa como uma tarefa essencial. Apesar dos problemas que persistem para a economia de Cuba e para a qualidade de vida de sua população, é perceptível os esforços do governo da ilha para evitar o colapso do regime socialista articulando uma nova rede de aliados internacionais, e esse evento ocorreu seguindo essa estratégia.
O bloqueio é a principal ferramenta do imperialismo em sua tentativa de quebrar e render o socialismo e internacionalismo dos cubanos. Esta política hostil constitui uma violação sistemática e permanente dos direitos humanos de todo um povo e o bloqueio representa o principal obstáculo ao desenvolvimento de Cuba, pois é observável infelizmente, que os cubanos permanecem se deparando décadas após décadas com uma realidade cristalizada de perda do poder de compra no mercado internacional, com a consequente escassez de gêneros básicos, como alimentos e combustível, e a adoção de rígidos programas de austeridade e racionamento. Durante os dias de hospedagem, vivenciamos falta de água e desligamentos de energia por alguns horários. “Os embargos econômicos sempre existiram para nós, mas Fidel conseguia negociar e tomar medidas que mantinha benefícios para a população. O governo também mudou não só aqui, como nos Estados Unidos, e o acesso aos produtos, mesmo de forma não regulamentada, era mais fácil. Agora a fiscalização está intensa. Por exemplo, se um carburador de um carro desse nosso quebra, uma peça que a gente conseguia com até 15 dias, hoje demora um mês até três. Um trabalhador passar um mês sem exercer sua atividade vai se sustentar como?”, relatou Adrian, organizador de passeios nos carros clássicos, vinculado ao Estado. Embora seja impossível estar em Cuba e não falar de Fidel, existe algumas poucas pessoas que relatam não ter gostado de Fidel e do regime ditatorial imposto. O historiador Daniel Aarão Reis fez várias críticas à este aspecto nos seus estudos sobre Cuba. Ressalta Reis (2021) que:
De tanto se transformar, o homem virou um símbolo, quase que desencarnado, embora encarne do modo mais vivo, a revolução que procurou sempre monopolizar e que ajudou a forjar como uma ditadura revolucionária. E se fez assim um ditador amado. Pata glória sua e miséria das gentes da revolução e de si mesmo.
Por outro lado, vimos durante a estadia que a maior transformação ocorreu no setor de turismo, que se tornou a principal atividade econômica de Cuba. As grandes cadeias hoteleiras européias, em particular as espanholas, afluíram para a ilha, constatadas ao chegar na Praia de Varadero, que dá a impressão de ser privativa dos hóspedes. A expansão do turismo gerou igualmente um amplo mercado de trabalho em tempo integral ou parcial para muitos cubanos, em atividades informais como guias, motoristas e garçons. Passeamos pelas ruas de Havana Vieja e por Varadeiro e conversamos com diferentes categorias de trabalhadores. Adrian nos ofertou um passeio por pontos turísticos por 25 dólares; o garçom Ruan nos confidenciou que recebia cerca de 3 mil pesos cubanos por mês, tinha flexibilidade de horários e ganhava algumas gorjetas em dólares, pesos e euros, a atendente Hanna contou que recebia cerca de 2500 pesos cubanos mensais, assim como uma operária do ramo lácteo. Os motoristas não tinham preço fixo, sabendo que lidavam com turistas, cobravam entre 5 à 12 mil pesos para transportar um grupo de 5 pessoas do San Agustín até o Capitólio. O acesso a moedas fortes, dólares ou euros, tornou os prestadores de serviços aos estrangeiros um grupo privilegiado na sociedade cubana, minando alguns dos valores de igualitarismo. Então é inevitável observar uma contradição vivenciada entre os trabalhadores vinculados aos serviços públicos, dos trabalhadores ligados ao turismo; dos proprietários das pequenas e médias empresas, dos proprietários de restaurantes e hotelaria.
As autoridades cubanas autorizaram a criação de empresas familiares, como os restaurantes caseiros que se tornaram conhecidos como “paladares” e também pequenas oficinas de trabalhos manuais. Na visita na La casa de Martha, propriedade familiar e loja de roupas com 6 costureiras e uma funcionária que cuida das redes sociais e faz vendas externas, aa proprietária compartilhou algumas informações. Em julho do ano passado, a loja que fica abaixo da sua moradia foi classificada como pequena empresa, ela paga taxas mensais e uma taxa anual sob a venda total do ano. Relatou que antes da pandemia vendia muitas roupas de linho, passou a comercializar roupas de viscose, pois o tecido comprado em uma empresa que vende apenas tecidos, está com valores mais caros. “A matéria-prima, com o bloqueio tem encarecido muito com isso o produto final fixa mais caro, mas com todo custo, estamos conseguindo ainda nossa clientela interna. Os turistas têm comprado menos, o que também nos faz ter uma política de preço diferenciada para o cubano e para visitantes” disse, Martha.
O peso subiu em três anos de 24 para 100 unidades por dólar à taxa oficial, enquanto no mercado paralelo é cotado a 350 pesos por moeda. Nesse contexto, concluímos que Cuba encontra-se em um momento de reflexão e transformação. O país é administrado pelo Partido Comunista de Cuba (PCC), que tem em suas mãos o desafio de navegar por um mundo em constante mudança, mantendo ao mesmo tempo a essência da revolução que definiu sua trajetória.
REFERÊNCIAS
ALTMANN, Werner. México e Cuba: revolução, nacionalismo, política externa. São Leopoldo: UNISINOS, 2002.
ENCUENTRO INTERNACIONAL DE SOLIDARIDAD, 1., 2024, Havana, Cuba. Tema: El Movimiento sindical latinoamericano y los procesos políticos en la construcción de la unidad en el contexto actual. Central de Trabajadores de Cuba; Secretaría Regional América Latina y El Caribe de la Federación Sindical Mundial, Centro de Convenciones Lázaro Peña González de la CTC, Lisa, Havana, de 22 de abril a 3 de maio de 2024.
FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.
HAVRANEK, Alice et al.; COGGIOLA, Osvaldo (org.). Revolução cubana: história e problemas atuais, São Paulo: Xamã, 1998.
MATOS, Almir. Cuba: a Revolução na América. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1961.
MORAIS, Fernando. A Ilha: um repórter brasileiro no país de Fidel Castro. São Paulo: Alfa-Omega, 1977.
REIS, Daniel Aarão. A revolução e o socialismo em Cuba. A Terra é Redonda [Blog]. 31 jul. 2021. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/a-revolucaoe-o-socialismo-em-cuba/. Acesso em: 25 jun. 2024.
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*Com Ivanilda Brito, José Leando Lino, Tiago Pascoal, Maria Lenilda Cordeiro